"Sorte nossa que as árvores não gemam e os animais não falem. Imagina se cada vez que se aproximasse uma
motossera as árvores começassem a gritar 'Ai, ai, ai!' e aos bois não faltassem argumentos
razóaveis para não querem entrar no matadouro. Imagine porcos
parlamentando em causa própria, galinhas bem articuladas reivindicando sua participação na renda dos ovos e gritando
slogans contra o hábito bárbaro de comê-los, pássaros engaiolados fazendo discursos inflamados pela liberdade. Os únicos bichos que falam são os papagaios, mas até hoje não se tem notícia de um que defendesse os direitos dos outros. O papagaio tem voz, mas não tem consciência de classe.
A vida humana seria mais difícil se não
pudessemos colher uma beterraba sem ouvir as lamentações da sua família e insultos do resto da horta. Não
deixariamos de comer, claro. Nem beterrabas, nem bois ou galinhas, apesar de seus protestos. Mas o remorso e uma correta noção de prepotência inerente à condição de espécie dominante, fariam parte da nossa dieta. Teríamos uma ideia mais
exata da nossa crueldade indispensável, sem a qual não viveríamos. Sorte nossa que os animais e vegetais não tem uma linguagem, quanto mais um discurso organizado. Não os comeríamos com a mesma
empáfia se os tivessem. O único consolo deles é que também padecemos de falta de comunicação: ainda não encontramos um jeito de negociar com os germes, convencer os vírus a nos pouparem com retórica e dar remorso em epidemias.
Eu às
vezes fico pensando em como seria se os brasileiros falassem. Se protestassem contra o que lhes fazem, se fizerem discursos indignados em todas as filas de matadouros, se cobrassem com veemência uma participação em tudo que produzem para enriquecer os outros, reagissem a todas as mentiras que lhes dizem, reclamassem tudo que lhes foi negado e sonegado e se negassem a continuar sendo devorados, rotineiramente, em silêncio. Não é da sua natureza, eu sei, só estou especulando. Ainda seriam dominados por quem domina a linguagem e, além de tudo, sabe que fala mais alto o que nem boca tem, o dinheiro. Mas pelo menos não os comeriam com a mesma
empáfia."
Luís Fernando
VeríssimoEu sei o texto é tão bom que
doí.